A gente cresce vendo que o padrão de beleza é sempre branco”, afirma o MC Nego Joca sobre o racismo no Brasil.

Vinícius Sanfelice
18 min readJun 16, 2021

--

O rapper Nego Joca no Viaduto Otávio Rocha no centro de Porto Alegre (RS). — Foto: Bianca Sabino.

Joaquim Luiz Braga Lima, o Nego Joca, é um MC gaúcho que conta histórias de sua vida a partir da música. Em suas letras, o rapper aborda o estresse, suicídio, objetificação dos negros, o rap marginalizado no Rio Grande do Sul, mas também fala sobre paixão e amor em músicas como “Não Diga Que Me Ama” e “Te Olhando de Longe”. Joca começou no rap em 2012, e atualmente, está cursando Publicidade e Propaganda na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Por Vinícius Sanfelice

Como tu começou no rap?

Eu escrevo letras desde muito novo, as primeiras letras eu escrevi com 12 anos, mas eram ruins. Contudo, eu já tinha minhas letras, mas eu não pensava em fazer a parada, as batalhas foram o que me levaram para esse lado de fato.

Quando eu comecei nas batalhas, eu passei a viver a cultura, porque antes eu só era um cara que curtia rap, e preferia inclusive mais o estilo americano ao invés do nacional. Eu passei a me vestir com roupas ligadas a cultura do rap com 11, 12 anos, fazer freestyle a partir dos 17 anos e fui numa batalha com 19. Então, nesse período dos 11 aos 19, eu passei por outras tribos, curtia pagode e funk.

Acabei por conta do Emicida, Projota e Rashid a voltar para o rap e começar a fazer freestyle (batalha de rima). Em 2010, quando eu comecei a rimar, eu já queria batalhar, mas eu achei que não tinha batalha aqui. Então, era um rolê muito caseiro, eu fazia aqui em casa, zoando minha mãe, minhas irmãs, totalmente treino, bem amador.

Quando eu fiz 18 anos em 2011, a minha coroa começou a me soltar mais, porque ela não me deixava fazer muita coisa quando eu era menor de idade. Aí, eu comecei a colar nos shows de rap, fui no do Emicida em 2011, no show do Projota e da Cone Crew. Mas, eu sempre fui um mano muito tímido, me considero até hoje, mas claro, a arte me ajudou bastante. Eu queria mandar um freestyle para as pessoas verem que eu sabia rimar, mas eu não tinha coragem. Só que na frente dos shows, eu e uns amigos bebíamos antes de entrar, daí eu me soltava e começava a rimar, e sempre fechava uma rodinha. Numa dessas, um mano veio e me disse “bah o meu tu é bom, deveria colar na Batalha do Mercado”, só que eu não sabia o que era, então ele explicou que era uma batalha de freestyle.

Nego Joca (à esquerda) ao lado do rapper Emicida (à direita) em 2011. — Foto: Arquivo Pessoal.

Assim, chamei um amigo que ia nos shows comigo, e fomos até o Mercado Público, mas cheguei lá só para ver como que era, nem ia batalhar. Perguntei para o cara que apresentava como funcionava para disputar. Daí, ele me explicou que era só colocar o nome na hora e se tivesse mais de 16 pessoas, eles sorteariam quem participaria. O cara perguntou meu nome e eu falei “Nego Joca”, só que eu não sabia que ele ia me inscrever na batalha. Mas, como ele colocou meu nome, eu não neguei, porque senão ia ficar de vacilão. Aí, ganhei minha primeira batalha, eu estava bem nervoso, eu tinha que flexionar minha perna, porque se deixasse reta, ela ficava tremendo. Depois na segunda batalha, eu perdi.

Na terceira vez que eu fui no Mercado, eu cheguei até a final e fui derrotado, mas na quarta vez, eu fui campeão. Aí, comecei a colar todo mês, e na época tinha uma galera independente que apoiava a batalha, tinha um cara que fazia beat e doava para o campeão e outro que tinha um estúdio caseiro e deixava o vencedor da batalha fazer uma gravação de graça, então, eu ganhei um beat e uma gravação. Fui campeão em setembro de 2012. Em outubro, lancei meu som e desde então comecei a fazer música, a partir disso nasceu o Nego Joca artista. Só que eu parei de batalhar em 2013, tirando algumas raras exceções.

Nego Joca na Batalha do Mercado em 2013. — Foto: Kika Tissiani.

Por que tu parou de batalhar?

Eu vejo a batalha como um meio, ou seja, é um negócio que vai te aperfeiçoar, mas ninguém pensa “vou ser um freestyleiro e construir a carreira em torno do freestyle”. A maioria dos artistas começam rimando e depois que eles passam a fazer música, param. Falando por mim, o cara perde o sangue no olho, porque quando tu começa a batalhar, tu quer provar para as pessoas que tu é bom.

Também acho que tem a questão do incentivo financeiro, porque até hoje não existe uma indústria das batalhas, no sentido de remuneração. Atualmente, até tem algumas batalhas que dão premiações, mas é algo muito pontual, não tem como tu ter um salário do rap no freestyle.

Desse modo, eu já tinha me provado (no freestyle), mas eu queria mostrar o quanto eu sou foda na música. Porém, eu recomendo que todos os MCs batalhem, porque é uma experiência muito boa para a formação de artista, ali tu aprende várias coisas. Eu, por exemplo, sendo um cara tímido, aprendi a ter presença de palco e a performar controlando a timidez. Já aconteceu de eu estar fazendo um show e dar problema no som, aí eu fiquei fazendo um freestyle com um amigo. São recursos interessantes, não essenciais, mas interessantes de se ter para quem quer ser um rapper, mas eu acho que as batalhas são passageiras.

Tu falou um pouco sobre o rap te ajudar com a timidez, mas de que maneira o estilo musical te auxiliou a sair da zona de conforto?

O rap foi uma maneira de eu me expressar. Talvez se eu não fosse tão tímido, eu não teria ido para a arte, porque ela foi uma válvula de escape, onde eu conseguia expressar o que eu estava sentindo. Antes, se eu tinha que apresentar um trabalho, eu ficava olhando para o chão, gaguejava, e hoje eu consigo lidar com isso.

O freestyle me deu recursos para driblar as minhas limitações naturais e chegar em um objetivo que eu tinha. Se pudesse, eu seria tipo um Gorillaz (banda conhecida pelos artistas serem representados por desenhos), porque a minha meta é ter meu trampo reconhecido e não necessariamente a minha imagem. Eu prefiro o sucesso que a fama. Agora que eu já estou mais maduro, eu vejo que muita coisa da popularidade é ruim e nada vem de graça, nem dinheiro nem fama.

Além disso, a música também me ajudou muito com relacionamentos, eu comecei a desenrolar com as minas, meu relacionamento interpessoal melhorou de todas as formas, porque eu fiquei mais desenvolto, consegui argumentar melhor, claro que não foi da noite para o dia, foi um processo.

Como foi a trajetória do início da tua carreira até hoje?

Foi longa. Eu queria cursar Música, mas daí eu descobri que quando tu escolhe o curso e passa no vestibular, depois, tu tem que fazer uma segunda prova para mostrar que tu sabe ler partitura e conhece partes teóricas da música. E, até hoje eu não sei, então eu pensei que não ia rolar.

Teoricamente, eu teria me formado (no ensino médio) em 2010, quando eu fiz 17 anos, mas eu reprovei duas vezes, então me formei em 2012. Nesse ano, eu estava pensando o que eu faria na faculdade. Eu tenho uma irmã que entrou no ensino superior em 2008 pelo Prouni, foi a primeira da família que entrou na faculdade. Eu nem sabia o que era isso, não sabia o que era UFRGS, achei que era pago. Mas, como eu tinha a referência da minha irmã e a minha mãe me incentivou a fazer o vestibular, eu fiz.

Então, eu pensei em qual curso escolher. Teria que ser algo que eu gostaria, mas que também me ajudaria na carreira musical. Aí, escolhi Publicidade e Propaganda (PP), porque eu me achava uma pessoa criativa, e quando eu era criança eu assistia às propagandas na TV e pensava “como que esses caras fazem isso? Quem que teve a ideia desse slogan? Como construiu isso?” Mas, pelo lado da música, eu também falava que queria ser a minha própria agência, por isso escolhi PP.

Eu entrei na FABICO (Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da UFRGS) no segundo semestre de 2014. Então, eu demorei uns 3 anos para perceber que mesmo se eu soubesse todos os conceitos acadêmicos do mundo, sem uma estratégia de financiamento e trabalhando sozinho, eu nunca evoluiria minha música.

Por exemplo, eu comecei a escrever meu primeiro EP (Extended Play), o Pré-História Vol.1, em 2013 e demorei 3 anos para lançá-lo, porque eu tinha que fazer esse rolê de escrever a música, juntar dinheiro para pagar o beat, depois juntava grana para pagar o estúdio, mas daí precisava de dinheiro para conseguir uma capa para a música, então, eu conseguia dinheiro para a capa. Como eu não tinha grana, as músicas não tinham uma consistência de lançamento, logo não impactava nem engajava as pessoas.

Pré-História Vol. 1 no Spotify:

Em 2018, eu vi que uns conhecidos meus tinham feito crowdfunding (financiamento coletivo) para produzir um disco e deu certo. Daí, eu pensei em fazer isso para mim, mas essa parte de planejamento eu nunca soube fazer. Então, no aniversário da minha amiga Brenda em 2018, eu chamei ela e mais três amigas e contei a ideia de fazer o financiamento coletivo, mas que precisava de ajuda para estruturar essa campanha, e elas aceitaram. Nós ficamos quase um ano planejando e lançamos o crowdfunding em abril de 2019, no meu aniversário, mas ele tinha pouco tempo de duração.

Na ação, nós prometemos vários brindes para quem apoiasse financeiramente, mas muitas dessas recompensas só seriam possíveis entregar caso conseguíssemos o dinheiro integral para lançar o disco. Então, nós fizemos a campanha em formato “tudo ou nada”, isso significa que se não bater a meta, todo o dinheiro arrecadado volta para quem apoiou. Porque o outro formato, o “flexível”, se não bater a meta, tu recebe o dinheiro que foi pago, mas tem que entregar os prêmios mesmo não tendo toda a grana. Porém, o problema do “tudo ou nada” é que o tempo máximo é de dois meses, e a gente precisava arrecadar 15 mil reais nesse tempo, com o objetivo de lançar meu primeiro álbum que foi o “Pré-História Vol.2”.

Conseguimos bater a meta nos 45 do segundo tempo. Até pedir dinheiro na rua, eu fui. Foi aí que eu vi que queria mesmo ser artista, porque eu não trabalhei a timidez a ponto de chegar para um estranho e pedir dinheiro a troco de nada.

Pré-História Vol. 2 no Spotify:

Tu faz rap com vários estilos diferentes, alguns tristes, outros mais felizes e até love songs (músicas românticas). O que faz tu escrever um gênero de música em um momento e outro tipo em outra situação?

É o que eu estou sentindo na hora. Eu me considero muito limitado para criar, porque para fazer a letra, eu preciso ouvir o beat primeiro. Para mim, cada beat é um sentimento, eu sinto o beat me dar a pauta. Eu não tenho isso de sentar e “vou escrever uma música assim ou assado”. Às vezes, acontece de dar uma ideia, eu começo a escrever a letra já pensando em um beat, mesmo sem ele existir, mas eu estou com a ideia dele na minha cabeça. Mas é algo muito natural, não rola muito por demanda.

Acontece de eu estar na inspiração para escrever algum som. Por exemplo, na “Qualquer Luz”, eu compus o primeiro verso e o refrão. Eu escrevi essa música em 2017, e não mexi mais nela, porque eu não estava mais nessa inspiração e não consegui terminar. Só em 2019, me bateu a mesma vibe, assim, eu terminei a letra. Mas teve outra música, que não bateu mais a inspiração e eu tive que terminar na pressão, até rolou, mas não é algo que eu procuro forçar.

Clipe da música “Qualquer Luz”:

Na música “Burnout”, tu expõe o que tu está sentindo por conta dessa síndrome, que muita gente está tendo, principalmente agora na pandemia. Quando tu escreveu a música já estava em isolamento social? O que fez tu escrever ela?

Sim, e ela fala sobre esse contexto, mesmo sem mencionar diretamente a pandemia. A maioria das minhas músicas são vivências reais ou inspiradas em algo que eu vivi. Por exemplo, tinha uma festa que eu via essa mina todo mês, e eu sempre ficava cuidando, mas não tinha coragem de chegar nela. Então, um amigo meu falou para eu mandar um freestyle nela, daí nessa, veio o insight de escrever a letra do cara com vergonha de chegar na guria e usar a música para expressar o sentimento, assim nasceu “Te Olhando de Longe”.

Clipe da música “Te Olhando de Longe”:

“Burnout” é a mesma coisa, foi sobre uma experiência que eu estava tendo no contexto de pandemia. Quando chegou a quarentena, eu trabalhava numa agência, que era tóxica para mim. Eu estava trabalhando bastante no presencial antes da pandemia, aí começou a quarentena e comecei a fazer home office, e como eu nunca tinha feito isso, eu não tinha os macetes de hoje, como colocar limite, ter um espaço próprio para o trabalho, portanto, eu trabalhava 10 horas por dia, resolvendo coisas às 11 horas da noite.

Isso começou a afetar a minha saúde mental e eu parei de me exercitar. Passei a ter insônia, comecei a acordar de madrugada para trabalhar e dormir de dia, virou um looping, trabalhando muito e dormindo pouco. Eu comecei a pensar na letra nessas madrugas que eu fazia muito café para trabalhar. Se fosse para colocar as minhas músicas numa ordem cronológica, ela antecede a “Me Leva, Me Deixa” que é uma música que eu falo sobre suicídio.

“Burnout” no Youtube:

Na música “Me Leva, Me Deixa” tu fala sobre suicídio de forma subjetiva, essa foi a maneira que tu encontrou para falar sobre um pensamento que tu teve durante a pandemia, sem fazer apologia ao suicídio?

Sim. Eu tive um episódio no qual eu pensei em cometer suicídio, e como qualquer outra vivência minha, eu quis transformar isso em música. Na época, eu escutava o sample dessa música e já estava com a saúde mental fragilizada, mas ainda não tinha pensado em suicídio. Entretanto, quando eu fui escrever a letra no dia seguinte, eu pensei “não vou conseguir falar disso de uma maneira explícita e ficar com a hipótese de ter gerado o gatilho em alguém, mesmo que eu não saiba”.

Consequentemente, eu pensei em falar de uma forma figurada, então eu tive essa ideia de colocar na música como se eu estivesse fugindo com uma paixão, uma namorada. E, foi muito engraçado, porque quando eu toquei a música para a minha mãe, ela não entendeu e perguntou “quem é essa paixão?”. Daí, a partir disso eu me senti mais seguro de lançar a faixa.

“Me Leva, Me Deixa” no Youtube:

Para evitar algo ruim, tu também colocou na mesma faixa a parte “Me Deixa”, como se fosse uma história, onde no primeiro momento tu está em uma fase ruim e depois fica bem.

Exato, isso foi algo que eu pensei também. Colocar duas músicas na mesma faixa, para ser o momento da bad trip e depois a parte que recobro a consciência, fico mais calmo, já sabendo o valor da vida e a merda que seria se tivesse cometido suicídio. Eu coloquei junto para ter esse contraponto e terminar de uma forma positiva.

O que fez tu ver que precisava de ajuda profissional?

Eu acho que o que me levou até essa noite de eu pensar sobre suicídio é que eu estava no contexto da “Burnout”, e como eu parei de fazer exercícios físicos na época, eu ficava fim de semana inteiro bebendo e fumando maconha para não ficar sóbrio e ter que se preocupar com as coisas que lidava durante a semana. Portanto, abruptamente, eu resolvi parar de beber e fumar, mas eu acho que isso desencadeou uma crise de ansiedade muito forte que eu tive nessa noite, a ponto de parecer que não era eu que estava controlando meus pensamentos, eu parecia um espectador vendo outro Joca, que estava pensando em maneiras de se matar. E, eu fiquei muito chocado, fiquei com medo de mim mesmo.

Além disso, meus amigos já tinham falado para eu procurar uma terapia, mas eu não ia atrás por conta de grana. Contudo, depois desse episódio, eu ajeitei meu orçamento e fui atrás de ajuda.

Na música “Quem Será”, tu diz que se sente falando para os mesmos. Tu explicou que desde o início no rap em 2012, parece que as mesmas pessoas te escutam, e que são só as pessoas próximas, como os amigos. Tu ainda te sente desse jeito, meio anônimo, ou tu acha que está ganhando relevância na cena musical?

Uma coisa que é muito característica do meu trabalho é a minha subjetividade tanto racial, quanto geográfica. O meu trampo é sobre o que é fazer rap no Sul, que é uma cena marginalizada em relação a São Paulo e Rio de Janeiro, e o que é ser preto no Rio Grande do Sul. Porque aqui a nossa memória não existe para o povo gaúcho. E, é um bagulho tão hegemônico essa imagem do Sul ser a Europa brasileira, que ela é exportada para o resto do país. Isso é tão disseminado que até mesmo os pretos, militantes e gente que eu admiro de outros estados já disseram que no Sul só tem branco e o sulista não sabe fazer rap. É um paradoxo muito louco de ver. Nem os caras que tu admira, reconhecem a tua existência.

Contudo, quando eu digo que estou falando para os mesmos é porque eu fiquei 8 anos fazendo rap só falando para as mesmas pessoas, meu público sempre foi gente daqui. Por uma questão de eu não conseguir divulgar meu trampo direito, meu público sempre foi quem eu conhecia, aquele cara que não escuta rap, mas te escuta, porque ele te conhece, então é uma relação mais emocional. Essa galera sempre foi o meu público, e também algumas pessoas da cena local.

No entanto, com o lançamento do disco (Pré-História Vol.2) eu passei a ter mais gente me ouvindo, mas 99% das pessoas devem ser aqui do estado, porém já chegamos a outros locais, como São Paulo, Rio e Pará. Dentro do Rio Grande do Sul, acho que já expandiu um pouco mais, e está mais solidificado, mas ainda sinto que estou falando para os mesmos, porque eu não consegui furar essa barreira totalmente.

“Quem Será” no Youtube:

Entrando agora na música “Meu Mundo Você é Quem Faz”. Tu conta a história de uma menina branca que faz Psicologia na PUCRS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul), um estereótipo de pessoa rica, mas que inicialmente parece estar engajada com o movimento do rap. Depois, tu percebe que na verdade ela só queria te usar, tendo um fetiche em teu corpo por ser negro, aí tu viu que ela já tinha feito isso com os teus amigos e na verdade aquilo era uma cilada. Tu observou essa objetificação acontecer muito a tua volta, já aconteceu contigo, assim como na música?

Sim. A letra em si não é a história de uma pessoa só, eu compilei fragmentos de memórias de relacionamentos que eu tive e também de amigos para construir a música. Foi um processo, eu não sabia toda essa questão de “palmiteiro”, que é o cara negro que só pega guria branca, e eu fui chamado disso lá na UFRGS, sem fazer ideia do que significava. Aí, minhas amigas me esclareceram o conceito, e eu não via problema nisso, então, elas me explicaram a questão da solidão da mulher negra.

Por uma questão do sistema que a gente nasce, nós crescemos vendo as pessoas brancas na televisão. A mocinha bonitinha da novela é sempre uma mulher branca e o mocinho também é sempre branco. Dessa maneira, a gente cresce vendo que o padrão de beleza é sempre branco. E, eu comecei a entender que o gosto é construído a partir das referências que nós temos desde pequenos.

Eu percebi isso e olhando para trás na minha vida, eu só tinha ficado com uma mina preta antes de entrar na FABICO. Raramente, eu me interessava por uma menina preta, e quando isso acontecia, era uma guria em que a pele não era tão escura, com o cabelo alisado e o nariz não tão arredondado. Então, eu vi que meu padrão de beleza era embranquecido, e eu pegava só gurias brancas e não era por acaso, o meu gosto foi construído a partir desses padrões.

Mas, por que é muito mais comum ver meninas brancas que acham caras pretos bonitos, do que homens brancos que acham mulheres pretas bonitas? Porque querendo ou não, existe uma representatividade que o negro tem e que os brancos não conseguem nos excluir dela, porque é uma questão de mérito. Por exemplo, no futebol, se tu tem talento, tu vai jogar. Pode até ter racismo, mas o cara não vai deixar de te botar no time dele, podendo ganhar milhões de reais porque tu é preto. Querendo ou não, o futebol tem essa representatividade muito grande, os jogos passam na TV, os jogadores são superstars, mas como o esporte é um meio machista, quem tem essa visibilidade? Os homens pretos e não as mulheres pretas.

Então, elas não estão nesses poucos espaços. O que acaba gerando esse preterimento dos homens brancos em relação às minas pretas, e também dos homens pretos às minas pretas. Ao contrário não acontece tanto, porque as meninas brancas são influenciadas por esses pequenos espaços que a gente consegue ocupar, como futebol e música, e acaba passando esse empoderamento do homem negro, o que forma desejo em algumas minas brancas.

Foi um processo longo até eu mudar a minha mentalidade em relação a isso. Mas sendo sincero, teve que eu tomar no cu para eu começar a me afrocentrar, porque quando era a questão da solidão da mulher negra eu não tinha mudado tanto. Eu até achava que a menina branca que só pegava cara negro era a salvadora da pátria, porque eu pensava que elas não queriam ficar com o cara de olho azul e queriam pegar nós.

Só depois, que eu comecei a entender que existe uma fetichização, uma animalização da nossa imagem. Comecei a notar pequenas atitudes nas relações que eu tinha e a perceber que eu estava sendo objetificado. Foi aí que eu comecei a mudar, eu precisei ver que aquilo era prejudicial para mim e não só para as mulheres negras, para que eu começasse a mudar. Porque eu chamava a mina para ir no shopping, e ela não queria ir, mas sempre queria ficar comigo quando eu ia na casa da amiga dela e sempre me ligava para transar. Mas, quando ela ia apresentar o namorado para os pais, era o cara branco, porém quando ela terminava com ele, ela ligava para mim. Eu comecei a entender que essas minas não te vêm como um ser humano, mas sim como um animal e uma máquina de sexo.

“Meu Mundo Você é Quem Faz” no Youtube:

Ainda nessa música, em um momento, tu menciona que não tem costume de usar as redes sociais. Para você, quais os problemas relacionados a esses aplicativos? E o que mais além de se distanciar deles tu faz para diminuir a ansiedade?

As redes sociais já foram gatilho para muita crise minha. Uma experiência que me fez ser muito contra rede social foi quando eu comecei a trabalhar de social media numa agência em 2019. Eu nunca quis ser social media, porque eu não gosto de interagir com o público.

Entretanto, eu aceitei porque foi uma oportunidade na época, mas era algo que me dava muita ansiedade. Então, eu era obrigado, todos os dias, a abrir mensagem, DM (Mensagem Direta, da sigla em inglês), comentários e ficar interagindo com outras pessoas. Isso me trazia muita negatividade relacionada à tecnologia. Logo, sempre que eu não estava trabalhando, eu acabava não usando as redes sociais, cheguei até a excluir o Instagram nas férias. Não é algo que eu curto, mas é necessário por conta do meu trabalho e é onde está uma faceta da vida. É meio paradoxal, porque é muito tóxico, mas ao mesmo tempo nós queremos usá-las.

Tu faz Publicidade e Propaganda na FABICO, tu acha que o curso e o mundo acadêmico te ajudaram de alguma forma na carreira artística?

Com certeza. Eu sou muito grato por ter entrado na UFRGS. É engraçado, porque a gente vê o rap como o som das minorias e a voz dos oprimidos, mas é mais ou menos isso. O rap sempre teve um discurso social forte, mas ainda hoje é um estilo bastante machista e LGBTfóbico. Muito provavelmente, eu não teria descontruído meus preconceitos se não fosse a Academia. Agora, eu consigo entender que o rap é o som dos oprimidos, mas é de todos os oprimidos e pode ser a voz de qualquer minoria. Porque a moral do rap é derrubar o sistema e reformá-lo, o estilo nasce daquele contexto de repressão nos guetos dos Estados Unidos, com a polícia reprimindo e a comunidade gritando.

A universidade fez eu entender essas outras vivências, não é porque eu não sou gay que é mimimi. Se eu estou gritando que sou revistado pela polícia e eu fico puto que os brancos não escutam, aí eu vou dizer que o cara reclamando de homofobia é mimimi? A partir daí, eu comecei a entender o meu papel de artista em não reproduzir isso nas minhas músicas e nem tolerar. É uma questão de empatia.

Nego Joca escrevendo música na Casa de Cultura Mario Quintana. — Foto: Bianca Sabino.

Quais são as tuas maiores inspirações no cenário musical para escrever as letras?

Depende muito, pois como eu estou há quase dez anos no rap, muitos artistas já me inspiraram. O Emicida me influencia até hoje, mas talvez em questão de letra não mais, ele me motiva como pessoa, como imagem, empreendedor e um exemplo de negritude a seguir. Um cara que me inspira é o Wiz Khalifa, principalmente no flow e na melodia. Muitas outras pessoas também, como Young Thug, Future, Migos e Lil Baby, esse pessoal do trap que chegou nos últimos anos, porque eu escuto muito esse estilo todos os dias.

Aqui no Brasil, Djonga, Zudizilla, Nill, BK e Baco. Eu tenho vários estímulos, por exemplo, os Racionais são referência em tudo na minha vida, não só na música. Sabotage foi o primeiro cara que fez eu querer ser do rap. Gosto muito de MPB: Rita Lee, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Marcos Valle, Adriana Calcanhotto, Marisa Monte e Tribalistas. Curto soul também: Marvin Gaye, James Brown e Stevie Wonder. Basicamente, eu escuto de tudo, gosto muito de ouvir coisas fora do rap. Eu acredito que se eu escutar só esse estilo, o meu trampo vai ser mais do mesmo.

Nego Joca no Spotify:

Podcast com a participação do Nego Joca:

Entrevista realizada para a disciplina de Jornalismo Científico e Cultural do curso de jornalismo da UniRitter campus FAPA: Supervisão: Prof. Cristiane De Luca.

--

--